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| Berliner Mauer | [Matilde Campilho] |
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Meu querido, as árvores falam. Os tigres correm
olimpíadas em pistas muito mais incríveis do que aquelas feitas de cimento
laranja. Usain Bolt vezes
cem, o sorriso de Usain Bolt
vezes mil. A matemática não é difícil se você comparar tudo ao aparecimento
de um cardume. Alguns frutos nascem no chão, outros caem nos ramos. É preciso
estar atento. Certas canções despertam em nós a vontade de uma história que
já aconteceu mas que não vai acontecer mais. Algumas
histórias têm a duração exata de uma música rock, outras se dividem em
cantos. No intervalo dá para comprar pipocas. Poucas pessoas contaram as
riscas de uma zebra, mas todos os que o fizeram regressaram diferentes. O
alvo de um humano está no terceiro olho e um dia alguém vai explicar para
você como afagar ele e onde ele fica. Nunca aponte ao terceiro olho, com
aquilo é só cuidados. Algumas vezes vão te empurrar e você vai empurrar de
volta, provavelmente vai até querer pegar uma pedra para jogar no peito de
quem te feriu. Isso não está certo, mas é humano. Quase tudo o que é humano é
justo, não deixe que ninguém te diga o contrário – só não vale enfiar o dedo
no tal olho porque isso é igual a matar. A morte é o contrário da justiça. Os
peixes respiram debaixo de água e se você mergulhar entre
as rochas e se concentrar muito também vai conseguir. Ah é: os peixes
brilham mais do que as chamas, e alguns deles vão morar dentro de seus
pulmões. Segure-se. Faça por polir seu riso, principalmente ao entardecer.
Afine diariamente a pontaria e reze para que nunca seja necessário o disparo.
Não existe proteção melhor do que a consciência de que podemos decidir atirar
ao lado. Sim, daqui a muitos anos você vai conseguir acertar direitinho nessa
lata de coca-cola que a gente suspendeu no
sobreiro. Só acho que não vai querer. Também vai saber por que razão é melhor
segurar uma arma descalço – é que é na terra que
está a consciência do mundo, e é preciso escutar o seu ruído para agir em
verdade. Saiba também, querido, que muitas vezes a sombra de um desenho é bem
mais bonita do que o desenho que está à vista. É preciso estar atento, e
descobrir o bichinho que se mexe debaixo da folhagem. Não o mate: se cubra de
flores e entre para brincar com ele. sobre a nossa caverna "Lovely one, tocou sem querer a
canção do Tim com a Gal. Mil novecentos e tal.
Lembrei do teu rosto ferido pela faca de um verão ininterrupto, mais de
oitocentas falhas atlânticas ameaçando-nos a idade e ameaçando as divisão
concreta das estradas nacionais, ameaçando as grades decisivas do salão de
jogos da madrugada, ameaçando os enormes porteiros do século XXI. Tocou a tal
canção, foi no salão entre dois golpes, o canto veio do nada e por causa
disso eu também lembrei do cavaquinho de doze cordas ofendendo a hora de
ponta do metropolitano e alimentando assim a posição arqueada de nossas
sobrancelhas - que beleza nossa surpresa, nosso amor tão visível no rosto e
nas esferas metálicas da cidade. Éramos o duplo físico da cidade. Tudo tanto
sem sentido como um dia de domingo. Olha, espera, mudou. Agora veio o
Dominguinhos em pandilha com a Elba, que jukebox dos infernos, é bom ficar
com você vezinquando é o caralho, passou tempo
demais e desde o grande desastre é assim: a todo mundo eu dou psiu porque eu
tenho o coração meio vazio e nem o sabiá sentado em meu ombro remete para
aquele espaço cavernoso onde tudo brilhava, onde se refletiam as conversas de
Marselha, onde descansavam os jogadores de xadrez, onde sempre eram reveladas
as receitas do velho bolo de fubá. Fomos tão alegres na caverna. Deixa que te
diga que agora é tudo diferente, há mentiras profundas pairando sobre as
costas de um eterno tigre, há perguntas muito acostumadas com o silêncio. Há
desvios para a revolução mas a revolução não chega nem que o bicho tussa, há
frades monásticos mascando chiclete na estação e perguntando pelo último
fascículo da cartilha diplomática, há porteiros espirrando por causa da
enxurrada de gasolina que inundou nossas ruas e nossos extractos
bancários, quase tacavam fogo nos bancos mas depois não. Há lugares onde as
pessoas vão morrer e ninguém quase ninguém lhes deita a benção. Está cantando
a Bethânia agora. Neste lugar há gente com febre muito alta e mais ninguém
pergunta por ti. Tudo povo esperto. Oi. Às vezes eu lembro de você, passaram tantos anos e isto foi tudo uma
estúpida pirueta, minha cara no jornal, tua cara na escultura, queria
dizer-lhes que foi tudo por causa de uma frase dita às três horas da
madrugada num automóvel estacionado na frente da associação de jovens
tenistas, nessa época o preto norte-americano ainda estava vivo, tu disseste
sim e eu disse sim, formou-se a caverna mais bonita do mundo e mal de nós que
não soubemos escavar-lhe janelas, éramos tão jovens
amor, não há que pedir perdão, te escrevo entre um voo e outro, aposto que
não sabes que nalgumas horas até os aeroportos se enchem de silêncio, o silêncio
é o velho profeta que me persegue de soqueira na mão e me acha distraída, faz
o que quer comigo portanto eu fujo dele, tantos anos de cara arrebentada me
deram mais de doze pontos então agora posso viajar de graça, onde andarás em
que bar em que cinema, full stop. Veio um cheiro de
caverna. Alguém me fez uma pergunta e mais uma vez eu fintei a parada. Queria
tanto falar da cor mutante de teus olhos, das praias rochosas alentejanas
onde descobrimos a plasticidade perfeita da natureza, venha Richter, venha Rothko, venha Miquel, o sopro
natural é que forma tudo. Queria dizer-lhes que foi o maior amor de nossa
rua, que fugimos de nós como o louco foge da metáfora perfeita de Tarkovsky, que provavelmente conseguimos e que portanto disfrutem. Dos poemas, dos desenhos, das canções
na flauta, das entrevistas no rádio, dos retratos de camisa azul ou de
vestido longo, dos mantras aprendidos a partir das cabeças dos índios
despidos. Éramos perfeitamente europeus e agora não somos mais. No outro dia,
por telefone, te disse que casa da gente a gente acha. Queria contar-te da
terceira montanha que trepei e da bandeirinha
vermelha e branca que cravei em mim por causa disso, mas não disse nada.
Foste tu quem me ensinou que não se crava nada no corpo do mundo, só no corpo
da gente. Estou cravando um monte de coisas estúpidas na pele da terra, e por
causa disso eu não penso mais em você. Dizem que você agora é um humano mais
do que dotado de beleza e brilho. Eu, por acaso, já sabia disso. Só faço por esquecer disso a cada cinco minutos, por entre fotos e
nomes, entre um aeroporto e outro, entre um restaurante e outro, entre um
castiçal de prata e outro. It's a matter of self protection, amor, sempre te disse isso. Tua presença
física e espiritual, enigmática, doce, brilhante, enche por demais o friso
cronológico de meu tempo destinado. Então eu desisti, então eu fico colocando
moedinhas constantes e compassadas na jukebox. Sorte
a minha, acabou a lista tribal. Está tocando o Tom Waits, closing
time, e como de costume I Hope That I Don't Fall In Love With You. Beijo, durma bem, coma bem, ame direito, se esconda, fique aí,
cada um em sua montanha e essa é que é a fatalidade mentirosa mais justa de
todas. Ah, amor, tua cara, teu cabelo claro, teu corpo quando teu corpo entra
na fila do metropolitano. Escavaremos as janelas, deixaremos de herança ao
mundo uma belíssima caverna. Você precisa saber da piscina & etc, mas baby, eu sei que é assim. Alguém espirrou, saúde. Sleep tight, you, don't let 'em bite." | entrada | Llibre del Tigre | sèrieAlfa
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