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[Abílio Manuel Guerra Junqueiro]

 

Oração ao pão
In Pulvis

 

 

Oração ao pão
Com quantos grãos de trigo um pão se fez?
Dez mil talvez?
Dez mil almas, dez mil calvários e agonias,
Todos os dias,
Para insuflar alentos n'alma impura
Duma só criatura!
Homem, levanta a Deus o coração,
Ao ver o pão.
Ei-lo em cima da mesa do teu lar;
Olha a mesa: um altar!
Ei-lo, o vigor dos braços teus,
O pão de Deus!
Ei-lo, o sangue e a alegria,
Que teu peito robora e teu crânio alumia!
Ei-lo a fraternidade,
Ei-lo, a piedade,
Ei-lo, a humildade,
Ei-lo a concórdia, a bem-aventurança,
A paz em Deus, tranquila e mansa!
Comer é comungar. Ajoelha, orando,
Em frente desse pão, ou duro ou brando.
Antes que o mordas, tigre carniceiro,
Ergue-o na luz, beija-o primeiro!
Depois devora! O pão é corpo e alma
Em corpo e alma

O comerás,
Tigre voraz.
São dez milalmas brancas, cor de Lua,
Transmigrando divinas para a tua!

Δ

In Pulvis

Oh, que noite negra, que invernia brava!

Nem uma esterlina pelo céu reluz!

Chora o vento ao longe com a voz tão cava,

Como quando dizem que de dor chorava.

Toda a santa noite em que expirou Jesús! ...

 

Vêm sanguinolentos gritos moribundos

Das soturnidades torvas do horizonte!

Já nos ermos andam lobos vagabundos...

Já os rios cheios, com bramidos fundos,

Num dilúvio d´água vão de mar a monte! ...

 

Em casal de serras arde o castanheiro,

Lâmpada de pobres a fazer serão;

Derredor do grande, festival braseiro,

A mulher, os filhos, o bichano e o cão.

 

Queima-se o gigante, rude centenario,

Que jamais os astros hão-de ver florir ...

E do seu cadáver o esplendor mortuário

Faz dessa choupana quase que um sacrário

Como uma alma d´oiro dentro dela a rir! ...

 

Tem o velho ao colo o seu netinho doente;

-Morte negra, foge do telado, ó, ó, ...-

E no lar as brasas simultáneamente

Dizem para o anjo: -tudo é oiro ardente ...

Dizem para o velho: tudo é cinza e pó! ...

 

Quantas vezes, quantas! por manhãs radiantes

Em pequeno, alegre como um colibrí,

Não trepara aos braços todos verdejantes

Desse castanherio, que nalgus instantes

Há-de ver em cinzas já desfeito ali! ...

 

Quantas vezes, quantas! lhe bailara em torno!

Quantas noites, quantas! ele ali dormia

Pelo mês das ceifas, quando o luar é morno,

E das restolhadas, quentes como um forno,

Se evolavam cheiros d´arreçã bravia! ...

 

Como não sentir um entranbado afecto,

Como não amá-lo com veneração,

Se lhe dera a trave que sustenta o tecto,

Se lhe dera o berço onde repoisa o neto,

Se lhe dera a tulha onde arrecada o pão!

 

Fez com ele o jugo e fez com ele o arado;

Fez com ele as portas contra os vendavais;

E com ele é feito o valho leito amado,

Onde se deitara para o seu noivado,

E onde já morreram seus avós, seus pais!

 

E o bom velho embala o seu netinho doente...

-Morte negra, foge... dorme, dorme... ó, ó...-

E, fitando as chamas simultáneamente,

Ri-se a criancinha, vendo o oiro ardente,

Lagrimeja o velho, vendo cinza e pó! ...

 

A velhinha reza, reza afervorada...

Tão velhinha e branca, branca de jasmins,

Que a idealizo e creio d´esplendor banhada,

Entre palmas verdes até Deus levada

Num andor de resas pelos serafins...

 

Reza pelos mortos... reza à  virgem pura...

Desde a sua infancia tão ditosa e bela,

Já dessa choupana (como a noite é escura!)

Quantos  têm partido para a sepultura,

Quantos têm ficado dentro d´alma dela! ...

 

Dentro d´alma dela, triste campo santo,

Muitas almas vivem mortas a sonhar! ...

Vivem mortas, mudas, num dorido encanto ...

Nos seus olhos vítreos cristaliza o pranto,

Nos seus labios roxos fosforesce o luar...

 

E essas almas fluidas que ela traz consigo,

-Talismã da crença, mágico poder!-

Frias como a neve vêm do seu jazigo,

Vêm sentar-se todas no lugar antigo,

A chorar à roda do braseiro a arder! ...

 

Ai dos pobres mortos que não têm fogueiras,

Nem velhinhas santas que lhes dêem luz!

Sob leivas, onde ninguém põe roseiras,

Umas sobre as outras juntam-se as caveiras,

Dando sangue aos vermes, podridões à Cruz ...

 

Desses desgraçados, mortos no abandono,

Onde estão as almas! Para que Deus as fez?

Quando o vento uivando lhes perturba o sono

Pela treva errantes, como cães sem dono,

Andarão perdidas a ulular talvez! ...

 

Pois até por essas que ninguém conforta

A velhinha chama... e todas elas vêm ...

-Vinde, pobrezinhas, (como o vento as corta!)

Vinde aquí sentar-vos, que eu vos abro a porta,

A aquecer-vos, filhas, ao meu lar também! –

 

E a dos olhos garços pastorinha bela

Fia no seu fuso linho por corar;

É trigueiro o linho, trigueirinha é ela...

Rodopia o fuso ... quando for donzela,

Já terá camisas para se ir casar! ...

 

 

E esse fuso alegre onde se enrosca o linho

Já foi ramo verde nesse tronco em brasas;

Deu já cachos brancos como o branco armiño,

Já sobre ele a ave construiu seu ninho,

Já sobre ele amando palpitaram asas! ...

 

Fuso, como giras em dedinhos breves

Prazenteiramente, com tão louco ardor!

Que estarás fiando? ... que enxovais? ... que neves?

Se serão camisas, ou mortalhas leves,

Camas para bodas, ou lençóis de dor! ...

 

No vetusto escano o lavrado sombrio

Pensa na courela... Santo Deus, Jesús!

Se a tormenta engrossa, se lha leva o rio,

Como é que há-de o gado pelo ardor do Estio

Sustentar-se a piornos de fraguedos nus!

 

Choram ventanias!... pânica tristeza!...

Sentem-se na loja bois a ruminar...

Queixas insondáveis vêm da natureza!...

Quanto monstro mudo, quanta língua presa

Contemplando a Noite sem poder falar!

 

Ronronando ao lume, dorme o cão e o gato.

Almas misteriosas, em que sonharão?

Como que num dúbio lusco-fusco abstracto,

De ter sido tigre lembra-se inda o gato?...

De ter sido hiena lembra-se inda o cão?...

 

Eis as brasas mortas ... Ei-lo já converso

O castanheiro em cinza, em fumo vão, em luz...

Luz e fumo e cinza tudo irá disperso

Reviver na vida eterna do universo,

Círculo de enigmas, que ninguém traduz ...

 

Sempre, sempre, sempre, cinza, fumo e chama

Viverão, morrendo a toda a hora ... sempre! ...

Nuvem que troveja, cáliz que embalsama.

Planta, pedra, insecto, humanidade, lama.

Serão tudo, tudo! ... inconcebible! ... Sempre!

 

Mas a alma, as almas, quem as há criado?

Ah, em vão levanto o triste olhar magoado

Qual a origem donde a sua esencia emana? ...

Para os olhos d´oiro que do azul sagrado

Lançam as estrelas à miseria humana! ...

 

Oh em vão! … que os astros, onde em sonho habito,

São também fogueiras sobrenaturais,

Que na pavorosa noite do Infinito

Crepitando espalham seu clarão bendito,

Suas alvoradas róseas, virginais,

 

Para em torno delas se aquecerem mundos

A tremer com frio, a soluçar com dor,

Miseráveis monstros cegos, vagabundos,

A través d´eternos turbilhões profundos,

Num vertiginoso, angustioso horror! ...

 

E ardam astros d´oiro, ou ardam castanheiros,

No Infinito imenso ou num tugurio assim,

Fica a mesma cinza desses dois braseiros,

Átomos errantes, sonhos vãos, argueiros

Na inconsciência calma da ampliado sem fim! ...

 

E o mundo e os mundos a girar na altura

Como vós, ó velhos, morrerão também ...

Blocos de materia fria, sem verdura,

Errarão na vaga imensidade escura,

Cemitério d´astros que nem cruzes tem!

 

Dormirão? oh, nunca! ... vão eternamente

Circular na eterna vida universal:

Nebulosa fluida, labareda ardente,

Lodo, o mesmo lodo, como antigamente,

Com os mesmos dramas entre o Bem e o Mal! ...

 

Formas da matéria, que eu em vão desnudo,

Que invisíveis forças, e almas encobris?

Quem o sabe? A Morte, que conhece tudo ...

Mas o enigma impresso no seu labio mudo

Só na treva aos mortos é que a morte o diz! ...

 

Só a morte o sabe ... mais a Fé que abrasa,

Que penetra as coisas com o seu olhar!

Não há fé na alma, não há luz na casa...

A razão é um verme, mas a crença é asa ...

Verme! Aos infinitos poderás chegar!

 

Ó velhinha santa, minha boa amiga,

Reza o teu rosário, move os lábios teus!

A oração é ingenua! Vem de crença antiga?

Não importa! Reza, minha boa amiga,

Que orações são línguas de falar com Deus! ...

 

Há pedintes cegos de inspiradas frontes,

Com estrelas n´alma, com visões mentais,

Que atravessam rios, que vão dar com fontes,

Que andam por agrestes, solitarios montes,

Sem errar a estrada, sem cair jamais! ...

 

Pelos bosques ermos, onde venta e neva,

Com os seus farrapos mais o seu bordão,

Marcham por milagre na continua treva...

Oh, dizei, dizei-me quem os guia e leva?

Que prodígio oculto? Que invisível mão?

 

Pois velhinha branca, tua crença pura,

Tua reza antiga, que me faz chorar,

É igual aos cegos, que na noite escura

Não precisam d´astros para ver a altura,

Não precisam d´olhos para ter olhar!

 

No infinito mudo tua ingénua crença.

Tremula ceguinha de risonho alvor,

Ei-la andando, andando, como que suspensa,

Pelos descampados duma noite imensa

Vastidões d´assombros, amplidões d´horror! ...

 

E onde a águia, o génio de pupila ovante,

Tem verigens, auras, desfalece e cai,

A ceguinha débil, vagabunda, errante,

D´olhos às escuras, Infinito adiante,

Num enlevo aéreo prepasando vai! ...

 

Branca e pequenina, ligeirinha e leve,

Corta os abismos, plagas sem faróis,

´Stepes infindáveis que ninguém descreve,

Lúgubres desertos de mudez e neve,

Bátegas de brasas, turbilhões de sóis! ...

 

Vai andando, andando, té que enfim cercada

Duma aleluia mística de luz,

Com o bordãozinho que a amparou na estrada

Bate às portas d´oiro da feliz morada,

Presbitério d´Almas, onde está Jesús! ...

 

Vem um anjo abri-las; a ceguinha mansa

Põe-se de joelhos, em adoração...

Diz-lhe o anjo; -Toma, guarda esta lembrança:

Uma palma d´astros, a luzir Esp´rança.

Que à velhinha humilde levarás na mão!

 

E, ave pressurosa recolhendo ao ninho,

Já com alimento para os filhos seus,

Ei-la que regressa por igual caminho,

E vem dar-te, ó santa, cor de jaspe e arminho,

Tão amada of´renda que te envia Deus.

 

Reza esse rosário, santa lagrimosa!

Sobre os teus joelhos deixa-me deitar!

Triste da minh´alma! ... vê, que desditosa!

Unge-ma de bênçãos, mão religiosa!

Cobre-ma de graças, cristalino olhar!

 

Reza-lhe baixinho, minha boa amiga!

Reza-lhe rosários de orações ideais!

Morta de miséria, morta de fadiga,

Deixa que ela durma na pureza antiga ...

Que ela durma... sonhe... e não acorde mais! ...

 

[Os Simples, Lello & irmão  Editores.  Porto, 1978]

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