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Não os das academias muito
frios, mas, sim, os que
cantarolando, à tarde, pintam flores nos arqueados dorsos
dos navios; os que pintam nos
ingénuos oratórios o agiológio inteiro e diabos e esqueletos, infernos bem acesos, os
negros purgatórios, Nossas Senhoras gordas e
Cristos magros como espetos. Estes sim. Sobre o meu peito
estendam, à vontade, os líricos azuis,
os vermelhos intensos, o negro amedrontante, o lívido alvaiade que me recorda
sempre um acenar de lenços... e os amarelos - eu
gosto intensamente do amarelo, talvez porque só ele, exacto, corresponde a um pedaço de sol
poisado no cabelo daquela que eu amei lá
longe... nem sei onde... e os roxos e os
verdes... Quero ficar janota. Sendo preciso lancem mão,
por exemplo, da pitoresca, fácil
anedota. Que eu fique sumptuoso qual
num templo hindu um Buda
estranhamente bariolado. Finjam anéis nos meus dedos,
aristocráticos anéis, pedras raras... e nelas um reflexo parado. Passeiem sobre mim, com
luxúria, os pincéis! No meu peito imaginem uma
intrincada floresta com tigres e leões e
ursos e serpentes, e, logo ao lado,
naturais, em ar de muita festa, numa merenda,
pacatas, boas gentes. Por sobre o coração, aí, ponham-lhes grades de cadeia ou de
hospício, negras e com ferrugem... Um oceano quebrar-se-á em
duas metades contra a garganta
espalhando babugem... E assim por diante... imagens desvairadas e o quotidiano
ingenuamente descrito; esvaídas cores das tardes
sossegadas e essas outras
berrando como um grito. E um século rolará,
comprido, estirado, e outro... e outro... e outro... e outros ainda mais... até que, um dia, o
achado do meu corpo mirrado corra o mundo, veloz,
nas linhas dos jornais. Acorrerão, então, atentos,
pressurosos, os que tudo
compreendem sem dificuldade. E estudado, classificado, eu
irei parar co' os ossos num armário
poeirento dum museu da cidade. E outra vida iniciar-se-á...
sem dúvidas, sem mágoas. Nas tardes de verão, com sol
lá fora, as loiras misses ágeis e azuis,
trincando gulodices, em mim descansarão
os olhos cor de águas... Vida talvez feliz... sem escarcéu... Será curioso ouvir dos
visitantes o diálogo. Só uma coisa me entristece:
eu deixar de seu eu para ser apenas o
número tantos do catálogo. [Saúl Dias]
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